Tenho pensado em você, pensado se você pensa em mim, se lembra
de quem sou. Mas se você nem ao menos sabe o que eu sou, nem quem eu sou, as
probabilidades de você pensar em mim são praticamente improváveis. Tive um pesadelo
hoje em formato de déjà vu, mas não tive medo, parecia como se o tempo todo eu soubesse o
fim. Esse sonho ruim me fez refletir o modo como tenho vivido a vida, de modo previsível.
Tudo era drama na sua época, falando assim, parece até que você teve uma época
só sua. É engraçado. Eu te achava um pouco descompensada, toda torta, errada.
Mas em alguns momentos você parecia tão certa, fazendo do mundo uma desgraça
tão clara, uma bagunça tão rara. Você guardava um milhão de convicções no
olhar, e eu sempre sem nenhuma maldita certeza. Devia ser por isso que eu
chorava tanto naquela época, por não me sentir parte de nada. E ainda hoje não
sinto, mas meus olhos estão fartos d’água. Ninguém sabe, nem você, mas foi você
meu primeiro incentivo a escrita. Grandes merdas. Tudo não passou de um monte
de merda, garota. Hoje em dia nem sei onde te encontro mais, o tempo passou,
mas as merdas continuam. Não há nada de profundo ou filosófico que eu gostaria
de lhe dizer, ou há tudo. Bom, não importa. Não há porta, janela, chaminé,
báscula de banheiro, caixa de correio. Não há nada, nenhum lugar por onde eu possa
entrar nessa sua nova casa. Encontro-te em todos os lugares, e morro de rir às
vezes, lembrando que você era uma gótica de meia tigela, que gostava de filme
de terror, gato preto, cemitério. Mas tinha medo de barata, você era uma
vergonha para o movimento. O movimento te leva te arrasta e você vai indo.
Parece que isso nunca aconteceu totalmente comigo. Já fui meio hippie, meio emo,
meio axé, meio quase todas essas merdas. Mas nunca fui totalmente nada, nem
totalmente eu. Isso sempre me preocupou, ou não. Nem sei se eu já havia
pensando nisso nessa perspectiva. Sou uma observadora de araque, tudo culpa da
minha preguiça. Lembro que você me xingava sempre, me mandando tomar vergonha
na cara “vai procurar o que fazer, saia desse marasmo”. Provavelmente você
nunca disse uma merda assim, talvez sim. Lembro que você amava palavras
difíceis e todas aquelas músicas de ópera, tentando sempre fazer minha cabeça,
tirando meu juízo. Vê se pode, você fumava aos 12 anos, ou eram 14? Eu não me
lembro de tanta coisa. Estou sofrendo de uma doença degenerativa monstruosa e avassaladora
no cérebro, chamada envelhecimento. Você sempre dizia rindo, que eu nunca iria
me tornar uma pessoa velha, por causa do meu bom humor invejável. Na verdade,
eu nunca tive nada de especial, nem o bom humor. Era só você, que era
fodidamente mal humorada sempre. O especial era você, e todos os seus adereços.
Hoje em dia meu humor nem anda lá essas coisas. Tantos problemas, sabe? Ou
problema nenhum. Uma maldição que não me abandona é o drama, coisa do signo,
sei lá. Você me explicava essas porcarias todas, e eu nunca prestava atenção,
achava tudo besteira. De fato é tudo besteira, mas eu gostaria tanto de lembrar
mais coisas. Você me ensinou coisas de grande valor, e eu nem sequer posso te
agradecer. Gostaria de saber onde você se esconde, me apresentar, te fazer lembrar
o pouco que ainda me lembro. Demorei muito para me tocar sobre o valor das
coisas. Demorei muito para superar e absolver todas as verdades que você socava
na minha cara sem dó, nem piedade. Tenho pensado em você com falta de detalhes,
estou com medo que o movimento da idade me arraste sem que eu chegue a
perceber.
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