quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Parte menos um

- Eu não consigo mais conversar com você. Mesmo estando sempre aqui, a maior parte do tempo, me sinto sozinha com a sua presença.
Anabel me disse na nossa penúltima conversa, enquanto eu acendia um cigarro. E tragar, certamente, foi a melhor desculpa para o meu silêncio. Mais um sermão como de costume, pensei. Sempre achei que eu nunca fosse me cansar de todas aquelas coisas, por mais de duas semanas, nem ela. Eu tinha um declínio ao drama, mas o show sempre ficava por conta dela, que dizia todas as coisas que eu supostamente merecia ouvir. Éramos aquilo. Na minha cabeça, não havia nada de errado nisso. Como uma caçamba de caminhão, ela sempre me enchia, nem sempre com o que tinha de melhor. E o amor era isso, não? Em grande parte do tempo: suportar. Eu era um péssimo suporte, nunca houve nada de técnico em mim, sempre fui só fazendo e indo, na maior parte do tempo sem pensar, medir
- Precisamos de um tempo, espero que com ele, você possa aproveitar esse seu mundo imaginário.
E eu ri daquilo. Afinal, o tempo todo ela dizia e fazia de tudo para me tirar de lá, meu mundo. “Você não pode voar”, ela repetia sem parar. Todas as minhas crises existenciais, meus medos de escuro, meus prantos sem motivo. Mas dessa vez foi tragicamente diferente, e eu ri de nervoso, com o estômago em fúria. Uma quebra na minha rotina, como uma ilha no meio do mar, quebrando a harmonia. Ela não tentou me salvar, dessa vez, ela sugeriu um suicídio: Pule! E isso foi um choque, um estalar de dedos. Eu demorei tempo demais para aceitar esse meu lado da moeda, que se sente confortável com o previsível. Na verdade, passei tempo demais tentando seguir uma ideologia que não era minha, ou será que era e agora eu estava sendo outra pessoa
- É sério. Eu não consigo lidar mais com isso. Eu preciso respirar, eu preciso...
- Mas temos um plano!
- Somos muito jovens para vivermos em função disso, existem tantos lugares que quero conhecer
- Eu também quero, com você, inclusive.
- Não me venha com essa, tentando fazer com que eu me sinta culpada por não querer estar em algum lugar com você. Não depois de todas as suas ausências.
- Eu vou embora.
- Tá vendo, você sempre foge!
- Mas não parece que você quer que eu fique. O que você quer que eu faça?!
- Fique presente, e encare o fato de não sermos mais como antes.
Quem éramos antes? Quem eu era antes. Faltou-me o ar. O filme, a banda, o autor – tudo era Anabel. Quem sou eu, afinal? Um pequeno surto, uma lente embaçada. Não consegui entender nada. Não havia um só lugar que eu quisesse estar sem ela. Nenhuma história em minha vida que ela não fizesse parte, ou soubesse. Pequenos detalhes, participando de tudo, impregnada em minha mente. Eu claramente não sou mais quem eu era antes, eu vivia em função dela agora, sabe-se lá há quantas horas.
- Você não pode sair da minha vida assim, não depois de tudo
- Você fala como se isso fosse o fim do mundo, como se “tudo” tivesse tanta importância
- E você faz parecer que nada conta.
- Seu drama não vai funcionar. Por que você nunca aceita a culpa?
- Por que a culpa é minha?
- Eu não aguento mais brigar
Mais uma vez, ela chorou como de costume. Como uma sequência programada de berros, seguidos de prantos. Como um relógio tic tac-ando. Era disso que eu estava falando, a previsibilidade de Anabel. Até na cama ela era assim, calculável. Talvez tenha sido esse o meu mal, minha inabilidade com a matemática. Por mais que tudo aquilo se repetisse, eu nunca conseguia entender o problema.
- Acho que é melhor eu ir
- Mas não volte amanhã, nem depois
- Volto quando então?
- Te ligo dizendo, eu preciso de um tempo
- Eu vou te esperar pra sempre, cê sabe...
Ela me abraçou de maneira tão fria, como se só eu estivesse ali, dessa vez. Não posso dizer que foi naquele momento que a ficha caiu, ainda que as lágrimas estivessem jorrando dos meus olhos. Anabel não estava mais chorando. Os papeis se inverteram. O tempo todo ela estava ali, por mim, em momentos em que nem eu estava. Entendi naquele momento o que os dicionários definem como impotência, ainda que, não conseguisse expressar com palavras aquele sentimento. Talvez, se eu implorasse tudo ficaria bem. Sempre tive muito problema com orgulho, mas esse não era o caso. Não era uma questão de domínio, quem estava com a razão ou não. Não era mais uma discussão boba, sem razão. O mundo fica de cabeça pra baixo, justamente na hora da distração, e a velocidade da volta não importa. Tudo o que você quer é algo ou alguém para se segurar. Se eu sempre procuro você quando estou mal com qualquer coisa, quando estou mal com você, quem eu devo procurar?
- É melhor você ir.
- Eu não posso ficar sem você! Eu não consigo lidar... com a sua ausência... Eu posso tentar... ser mais presente, por você... Não precisa... ser assim, sabe... Eu... Eu já mudei tanta coisa... A gente funciona, cê sabe... Eu
- Você precisa fazer mais coisas por você, e menos por mim
E em silêncio eu fui. Queria saber exatamente o que ela queria ouvir naquele momento, um “Eu te amo” parecia patético demais, naquela situação. Todo o tempo do mundo pareceu pouco agora, quando tudo acaba, a gente perde a hora. Eu fumei um maço inteiro, procurando uma resposta, enquanto ia pra casa. Ela manchou meu mundo imaginário com água e papel crepom. Onde é que eu moro, afinal? Com as pernas bambas, fui cambaleando, pela rua a fora. E ainda que tudo estivesse mal, a ideia de que ela não fosse me ligar, não me passou pela cabeça. Amanhã tudo se acerta. Não foi a primeira, nem a última vez que ela surta, ela é uma maluca. E eu dei um sorriso meia boca, enquanto chutava uma pedra no caminho. Na pior das hipóteses, se tudo der errado, eu taco fogo no presente que comprei pra ela de natal.

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