Anabel me disse na nossa
penúltima conversa, enquanto eu acendia um cigarro. E tragar, certamente, foi a
melhor desculpa para o meu silêncio. Mais um sermão como de costume, pensei.
Sempre achei que eu nunca fosse me cansar de todas aquelas coisas, por mais de
duas semanas, nem ela. Eu tinha um declínio ao drama, mas o show sempre ficava
por conta dela, que dizia todas as coisas que eu supostamente merecia ouvir.
Éramos aquilo. Na minha cabeça, não havia nada de errado nisso. Como uma
caçamba de caminhão, ela sempre me enchia, nem sempre com o que tinha de
melhor. E o amor era isso, não? Em grande parte do tempo: suportar. Eu era um
péssimo suporte, nunca houve nada de técnico em mim, sempre fui só fazendo e
indo, na maior parte do tempo sem pensar, medir
- Precisamos de um tempo, espero
que com ele, você possa aproveitar esse seu mundo imaginário.
E eu ri daquilo. Afinal, o
tempo todo ela dizia e fazia de tudo para me tirar de lá, meu mundo. “Você não
pode voar”, ela repetia sem parar. Todas as minhas crises existenciais, meus
medos de escuro, meus prantos sem motivo. Mas dessa vez foi tragicamente
diferente, e eu ri de nervoso, com o estômago em fúria. Uma quebra na minha
rotina, como uma ilha no meio do mar, quebrando a harmonia. Ela não tentou me
salvar, dessa vez, ela sugeriu um suicídio: Pule! E isso foi um choque, um
estalar de dedos. Eu demorei tempo demais para aceitar esse meu lado da moeda, que
se sente confortável com o previsível. Na verdade, passei tempo demais tentando
seguir uma ideologia que não era minha, ou será que era e agora eu estava sendo
outra pessoa
- É sério. Eu não consigo
lidar mais com isso. Eu preciso respirar, eu preciso...
- Mas temos um plano!
- Somos muito jovens para
vivermos em função disso, existem tantos lugares que quero conhecer
- Eu também quero, com você,
inclusive.
- Não me venha com essa,
tentando fazer com que eu me sinta culpada por não querer estar em algum lugar
com você. Não depois de todas as suas ausências.
- Eu vou embora.
- Tá vendo, você sempre
foge!
- Mas não parece que você
quer que eu fique. O que você quer que eu faça?!
- Fique presente, e encare o
fato de não sermos mais como antes.
Quem éramos antes? Quem eu
era antes. Faltou-me o ar. O filme, a banda, o autor – tudo era Anabel. Quem
sou eu, afinal? Um pequeno surto, uma lente embaçada. Não consegui entender
nada. Não havia um só lugar que eu quisesse estar sem ela. Nenhuma história em
minha vida que ela não fizesse parte, ou soubesse. Pequenos detalhes,
participando de tudo, impregnada em minha mente. Eu claramente não sou mais
quem eu era antes, eu vivia em função dela agora, sabe-se lá há quantas horas.
- Você não pode sair da
minha vida assim, não depois de tudo
- Você fala como se isso
fosse o fim do mundo, como se “tudo” tivesse tanta importância
- E você faz parecer que
nada conta.
- Seu drama não vai
funcionar. Por que você nunca aceita a culpa?
- Por que a culpa é minha?
- Eu não aguento mais brigar
Mais uma vez, ela chorou
como de costume. Como uma sequência programada de berros, seguidos de prantos. Como
um relógio tic tac-ando. Era disso que eu estava falando, a previsibilidade de
Anabel. Até na cama ela era assim, calculável. Talvez tenha sido esse o meu
mal, minha inabilidade com a matemática. Por mais que tudo aquilo se repetisse,
eu nunca conseguia entender o problema.
- Acho que é melhor eu ir
- Mas não volte amanhã, nem
depois
- Volto quando então?
- Te ligo dizendo, eu
preciso de um tempo
- Eu vou te esperar pra
sempre, cê sabe...
Ela me abraçou de maneira tão fria, como se só eu estivesse ali, dessa vez. Não
posso dizer que foi naquele momento que a ficha caiu, ainda que as lágrimas
estivessem jorrando dos meus olhos. Anabel não estava mais chorando. Os papeis
se inverteram. O tempo todo ela estava ali, por mim, em momentos em que nem eu
estava. Entendi naquele momento o que os dicionários definem como impotência,
ainda que, não conseguisse expressar com palavras aquele sentimento. Talvez, se
eu implorasse tudo ficaria bem. Sempre tive muito problema com orgulho, mas
esse não era o caso. Não era uma questão de domínio, quem estava com a razão ou
não. Não era mais uma discussão boba, sem razão. O mundo fica de cabeça pra
baixo, justamente na hora da distração, e a velocidade da volta não importa.
Tudo o que você quer é algo ou alguém para se segurar. Se eu sempre procuro você
quando estou mal com qualquer coisa, quando estou mal com você, quem eu devo
procurar?
- É melhor você ir.
- Eu não posso ficar sem
você! Eu não consigo lidar... com a sua ausência... Eu posso tentar... ser mais
presente, por você... Não precisa... ser assim, sabe... Eu... Eu já mudei tanta
coisa... A gente funciona, cê sabe... Eu
- Você precisa fazer mais
coisas por você, e menos por mim
E em silêncio eu fui. Queria
saber exatamente o que ela queria ouvir naquele momento, um “Eu te amo” parecia
patético demais, naquela situação. Todo o tempo do mundo pareceu pouco agora,
quando tudo acaba, a gente perde a hora. Eu fumei um maço inteiro, procurando
uma resposta, enquanto ia pra casa. Ela manchou meu mundo imaginário com água e
papel crepom. Onde é que eu moro, afinal? Com as pernas bambas, fui cambaleando,
pela rua a fora. E ainda que tudo estivesse mal, a ideia de que ela não fosse
me ligar, não me passou pela cabeça. Amanhã tudo se acerta. Não
foi a primeira, nem a última vez que ela surta, ela é uma maluca. E eu
dei um sorriso meia boca, enquanto chutava uma pedra no caminho. Na pior das hipóteses,
se tudo der errado, eu taco fogo no presente que comprei pra ela de natal.
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