- Eu não fumo. É melhor
assim.
- Não fumar ou o sol?
- O quê?
- O que é “melhor assim”?
E só então aí a olhei e sorri,
tamanha confusão. A claridade que vinha do sol, que brilhava atrás de mim,
refletia na lente dos seus óculos escuros, mas quem brilhava tecnicamente, era
eu. Ela usava coturno em um dia quente. Ela estava com a gola da blusa branca
suja de mostarda. Ela estava com o esmalte rosa desbotado. Ela era uma
verdadeira bagunça, como um jogo dos sete erros ao ar livre. Eu e a minha
maninha indelicada de observar tudo, inclusive os detalhes mais
despretensiosos. Mas ela estava ali extremamente rústica, visualmente
indelicada; sorriu pra mim, enquanto eu dizia
- Acho que os dois...
- Eu prefiro os dias
chuvosos. São melhores para tudo.
- Acho que “tudo” é muito.
- É, pode até ser. Mas me
fale de uma coisa que você tenha certeza, e não apenas “ache”.
- Bom, me deixa pensar...
Mas nada me vinha à mente. Sua intimidade me afetou aos montes. Sempre fui uma pessoa fria e impessoal, e
ela me deixou aflita, seu jeito intimo me intimidou de fato. Ainda que eu
quisesse me levantar, sair dali e ir para outro lugar, eu não tinha lugar algum
para ir, ninguém para encontrar, nada pra fazer. Então resolvi ficar
- Uma pergunta muito
difícil?
- Meu suco preferido é de
abacaxi com hortelã.
- Uma certeza surpreendente.
¬ Riso ¬ De todas as respostas que eu pudesse imaginar, nenhuma se pareceria
com essa.
- Mexi com seu psicológico?!
- Certamente! Prazer,
Eleanor.
E foi assim que o amor da
minha vida não chegou, outra vez. Toda essa paranoia de encontrar o maldito
amor da vida inteira, aquele que te arranca as entranhas, te tira do rumo, te
ganha, te perde, te rasga - e ainda assim te completa da maneira mais
maravilhosa, indescritível e formidável. Rondou-me durante muito tempo, não
posso negar que ainda há vestígios de toda essa idealização patética, seja lá
como se pode chamar toda essa baboseira melo dramática. A verdade é que,
estávamos ali, Eleanor e eu, duas pessoas aparentemente desencontradas, não
necessariamente perdidas. Eu pelo menos não estava, até agora, eu acho.
Uma senhora passou fumando,
e Eleanor lhe pediu o bendito isqueiro, com o qual acendeu seu medíocre cigarro
Hollywood vermelho, como um sonho americano que deu muito errado. E voltou a se
sentar ao meu lado.
- Você se incomoda se eu
fumar?
- Faria alguma diferença?
- Certamente eu continuaria
fumando, porém, me afastaria de você...
- Não, pode ficar. Eu
costumava fumar também.
- E por que parou, parou por
quê?!
¬ Risos¬
- Sou um pouco psicopata com
vícios. Não sei lidar muito bem com esse lance de depender das coisas. Às vezes
pego pesado demais. Acho que você não deve entender como é.
- Já te disseram que você
acha coisas demais?!
- Você é engraçada.
- I’m a Queen.
- I’m not a Queen. I'm a Khaleesi!
- Mhysa!
E eu me senti absolutamente patética, brincando com jargões de Game of
Thrones, o seriado favorito de Anabel, que inicialmente achei irrelevante, depois
aceitável, seguido de interessante, e por fim acabei mais viciada do que ela, sem perder nenhuma episódio. Certamente, esse não seria um dialogo que eu teria
com Anabel, eu sempre fiz pouco caso das “coisas” dela, não fazendo nada do seu
jeito, apenas sendo eu. Mas só até a parte em que ela conseguia me convencer que o que era dela era mais interessante. O que dava muito certo, ou melhor, deu. Nossa união
durou tanto tempo, que no fim acabei me esquecendo de quem era eu. Como dois
pontos paralelos que se encontram em uma linha reta, uma ponta é o inicio a
outra o fim, mas como identificar quem é quem? Eu era apenas uma sequência de
pequenos e grandes desastres, Anabel era aquilo que todos chamam de
intervenção. Ela era uma clínica de reabilitação para viciados em negação. No
fim das contas ela não suportou minhas crises existenciais
¬Silêncio¬
- Qual era sua marca de cigarros favorita?
- Sem dúvidas não era Hollywood.
- Você não consegue dar se quer uma resposta completa?
- Sim! – Viu?!
- “Sim”, meus parabéns!
Eleanor me aplaudiu de pé, enquanto isso, seu celular tocou. Não era um
Iphone, na verdade, era um aparelho antigo, mal pude reconhecer a marca. Sim,
sou detalhista, gosto das partes minuciosas, observar a obscuridade das coisas.
Foda-se, eu só devo ser potencialmente babaca. Ela não atendeu
- O botão de atender parou de funcionar semana passada, onde já se viu
um celular que não funciona a porra do botão de atender
- Realmente, seu aparelho não parece ser nem um pouco funcional. Se você
quiser, te empresto o meu, e você retorna a ligação
- Ah, não se preocupe, não deve ser importante... Ela sabe que meu
aparelho está quebrado, além do mais, estou em horário de serviço
- Bom, no meu mundo, pelo menos, quando alguém te liga é porque tem algo
a dizer. Não sei como tudo funciona aqui fora. Você trabalha na praça? É algum
tipo de animadora de bancos?
- HAHAHA Não, engraçadinha, mas esse emprego certamente pode ser seu. Eu
fui demitida, terceira vez em três meses. Esse é o meu desastre, e o seu?
- Eu não tenho um emprego.
- Nem eu. Estamos kits, para comemorar, podemos tomar uma cerveja
- Bom, eu não bebo assim...
- Com desconhecidos?
- Não, às segundas feiras.
- Droga, é segunda! Tinha me esquecido completamente
Então ela segurou a minha mão e me puxou. Confesso que me assustei de
inicio com o contato, mas eu nunca havia segurado mãos tão quentes como as de
Eleanor. Apesar de vários detalhes nela me fazerem lembrar Anabel, como os
dentes separados da frente e os olhos castanhos claros, o corte de cabelo não
tinha nada a ver, e os olhos de Anabel eram verdes, e os dentes de Eleanor nem
eram tão separados assim. Sei lá, era estranho. O desequilíbrio dela parecia
ser maior que o meu, e mais sem cura, como uma curva oposta em um espiral.
Eleanor seria alguém que Anabel não suportaria conviver por muito tempo, ou
então, não se separaria nem se quer por um segundo, se houvesse a chance de se
conhecerem um dia
- Vamos, levanta! Esse dia é dupla, tripla, quadro... mente não sei como
se completa essa palavra, desastroso. Vamos tomar aquele seu suco de... Laranja com graviola
- Abacaxi com hortelã?
- Isso. Não deve ser difícil de encontrar, como La passione
Levantei-me, e fui com ela. O que mais deveria ser feito, afinal? Estava
tudo terminado. Anabel disse que eu não deveria mais procurá-la, e apesar de eu
ser a teimosia em pessoa, quando quero, dessa vez resolvi obedecer. Como gran
finale, resolvi não fazer nada à respeito. Eu estava esgotada de toda aquela
relação conturbada, grande parte por minha culpa ou causa.
- Você conhece algum restaurante por aqui? Não sei muito bem andar por
esse bairro. Eu não moro aqui.
- Nem eu. Estou nesse emprego há menos de duas semanas, mas conheço um
boteco logo ali, na esquina
Fomos indo e indo. Cristo, eu não tenho costume de frequentar os bares
que encontro nas esquinas por aí, mas era um dia atípico. Peguei um ônibus
aleatório e fui até o seu ponto final, uma praça qualquer, e me sentei, estando
no final bem antes de embarcar. Eu mal suportava minhas pernas. Apesar de todo
o calor, saltei do ônibus suando frio, tremendo por dentro. O meu pra sempre
havia acabado há poucas horas atrás, com o veredito de Anabel. Eu estava
completamente lost, down em mim. Pensando apenas em como eu pude perder
a única pessoa
- É aqui. Pode se sentar
¬Eleanor puxou a cadeira para que eu me sentasse, e eu sentei, sem dizer
nada¬
- Pelo menos essa cadeira fria, de ferro, refresca um pouco esse calor
infernal.
- Eu gosto de sol, mas hoje realmente está muito calor.
O provável dono do bar veio nos atender, não tinha suco de abacaxi com
hortelã, Eleanor achou melhor não começar a semana se embebedando, ainda assim,
não fomos embora. Eu pedi um picolé de limão e ela um de manga. E ficamos ali,
esquentando cadeiras com nossos desastres, no nosso primeiro encontro.
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