quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Parte um

Um belo dia para não fazer nada, é assim que todos os dias se parecem pra mim, e raramente me surpreendem. Eu sou aquilo que chamam de desastre afetivo, me envolvendo mais com o nada, do que com qualquer outra coisa. Ela se sentou perto de mim, sem pronunciar nenhuma palavra. Ou será que fui eu quem se sentou, e pensou que não havia nada a ser dito? Um daqueles momentos em que a gente não sabe quem iniciou tudo aquilo que veio depois. “Você provavelmente não será o amor da minha vida”, pensei. Os relacionamentos sempre são super estimados. A ideia de que necessitamos encontrar alguém para obtermos a felicidade, é cruel. Uma questão maior do que a de encontrar alguém que está perdido é simplesmente se encontrar ao meio de tanta coisa. O mundo é um caos. O amor não parece passar de um clichê. Eleanor se sentou do meu lado, e eu não sabia seu nome, nem fiz questão. Eu estava em uma daqueles dias em que nada importa, mas tudo afeta. Ela me pediu um isqueiro para acender seu cigarro, e falou sobre o tempo. E sem dar muita atenção, respondi
- Eu não fumo. É melhor assim.
- Não fumar ou o sol?
- O quê?
- O que é “melhor assim”?
E só então aí a olhei e sorri, tamanha confusão. A claridade que vinha do sol, que brilhava atrás de mim, refletia na lente dos seus óculos escuros, mas quem brilhava tecnicamente, era eu. Ela usava coturno em um dia quente. Ela estava com a gola da blusa branca suja de mostarda. Ela estava com o esmalte rosa desbotado. Ela era uma verdadeira bagunça, como um jogo dos sete erros ao ar livre. Eu e a minha maninha indelicada de observar tudo, inclusive os detalhes mais despretensiosos. Mas ela estava ali extremamente rústica, visualmente indelicada; sorriu pra mim, enquanto eu dizia
- Acho que os dois...
- Eu prefiro os dias chuvosos. São melhores para tudo.
- Acho que “tudo” é muito.
- É, pode até ser. Mas me fale de uma coisa que você tenha certeza, e não apenas “ache”.
- Bom, me deixa pensar...
Mas nada me vinha à mente. Sua intimidade me afetou aos montes. Sempre fui uma pessoa fria e impessoal, e ela me deixou aflita, seu jeito intimo me intimidou de fato. Ainda que eu quisesse me levantar, sair dali e ir para outro lugar, eu não tinha lugar algum para ir, ninguém para encontrar, nada pra fazer. Então resolvi ficar
- Uma pergunta muito difícil?
- Meu suco preferido é de abacaxi com hortelã.
- Uma certeza surpreendente. ¬ Riso ¬ De todas as respostas que eu pudesse imaginar, nenhuma se pareceria com essa.
- Mexi com seu psicológico?!
- Certamente! Prazer, Eleanor.
E foi assim que o amor da minha vida não chegou, outra vez. Toda essa paranoia de encontrar o maldito amor da vida inteira, aquele que te arranca as entranhas, te tira do rumo, te ganha, te perde, te rasga - e ainda assim te completa da maneira mais maravilhosa, indescritível e formidável. Rondou-me durante muito tempo, não posso negar que ainda há vestígios de toda essa idealização patética, seja lá como se pode chamar toda essa baboseira melo dramática. A verdade é que, estávamos ali, Eleanor e eu, duas pessoas aparentemente desencontradas, não necessariamente perdidas. Eu pelo menos não estava, até agora, eu acho.
Uma senhora passou fumando, e Eleanor lhe pediu o bendito isqueiro, com o qual acendeu seu medíocre cigarro Hollywood vermelho, como um sonho americano que deu muito errado. E voltou a se sentar ao meu lado.
- Você se incomoda se eu fumar?
- Faria alguma diferença?
- Certamente eu continuaria fumando, porém, me afastaria de você...
- Não, pode ficar. Eu costumava fumar também.
- E por que parou, parou por quê?!
 ¬ Risos¬
- Sou um pouco psicopata com vícios. Não sei lidar muito bem com esse lance de depender das coisas. Às vezes pego pesado demais. Acho que você não deve entender como é.
- Já te disseram que você acha coisas demais?!
- Você é engraçada.
- I’m a Queen.
- I’m not a Queen. I'm a Khaleesi!
- Mhysa!
E eu me senti absolutamente patética, brincando com jargões de Game of Thrones, o seriado favorito de Anabel, que inicialmente achei irrelevante, depois aceitável, seguido de interessante, e por fim acabei mais viciada do que ela, sem perder nenhuma episódio. Certamente, esse não seria um dialogo que eu teria com Anabel, eu sempre fiz pouco caso das “coisas” dela, não fazendo nada do seu jeito, apenas sendo eu.  Mas só até a parte em que ela conseguia me convencer que o que era dela era mais interessante. O que dava muito certo, ou melhor, deu. Nossa união durou tanto tempo, que no fim acabei me esquecendo de quem era eu. Como dois pontos paralelos que se encontram em uma linha reta, uma ponta é o inicio a outra o fim, mas como identificar quem é quem? Eu era apenas uma sequência de pequenos e grandes desastres, Anabel era aquilo que todos chamam de intervenção. Ela era uma clínica de reabilitação para viciados em negação. No fim das contas ela não suportou minhas crises existenciais
¬Silêncio¬
- Qual era sua marca de cigarros favorita?
- Sem dúvidas não era Hollywood.
- Você não consegue dar se quer uma resposta completa?
- Sim! – Viu?!
- “Sim”, meus parabéns!
Eleanor me aplaudiu de pé, enquanto isso, seu celular tocou. Não era um Iphone, na verdade, era um aparelho antigo, mal pude reconhecer a marca. Sim, sou detalhista, gosto das partes minuciosas, observar a obscuridade das coisas. Foda-se, eu só devo ser potencialmente babaca. Ela não atendeu
- O botão de atender parou de funcionar semana passada, onde já se viu um celular que não funciona a porra do botão de atender
- Realmente, seu aparelho não parece ser nem um pouco funcional. Se você quiser, te empresto o meu, e você retorna a ligação
- Ah, não se preocupe, não deve ser importante... Ela sabe que meu aparelho está quebrado, além do mais, estou em horário de serviço
- Bom, no meu mundo, pelo menos, quando alguém te liga é porque tem algo a dizer. Não sei como tudo funciona aqui fora. Você trabalha na praça? É algum tipo de animadora de bancos?
- HAHAHA Não, engraçadinha, mas esse emprego certamente pode ser seu. Eu fui demitida, terceira vez em três meses. Esse é o meu desastre, e o seu?
- Eu não tenho um emprego.
- Nem eu. Estamos kits, para comemorar, podemos tomar uma cerveja
- Bom, eu não bebo assim...
- Com desconhecidos?
- Não, às segundas feiras.
- Droga, é segunda! Tinha me esquecido completamente
Então ela segurou a minha mão e me puxou. Confesso que me assustei de inicio com o contato, mas eu nunca havia segurado mãos tão quentes como as de Eleanor. Apesar de vários detalhes nela me fazerem lembrar Anabel, como os dentes separados da frente e os olhos castanhos claros, o corte de cabelo não tinha nada a ver, e os olhos de Anabel eram verdes, e os dentes de Eleanor nem eram tão separados assim. Sei lá, era estranho. O desequilíbrio dela parecia ser maior que o meu, e mais sem cura, como uma curva oposta em um espiral. Eleanor seria alguém que Anabel não suportaria conviver por muito tempo, ou então, não se separaria nem se quer por um segundo, se houvesse a chance de se conhecerem um dia
- Vamos, levanta! Esse dia é dupla, tripla, quadro... mente não sei como se completa essa palavra, desastroso. Vamos tomar aquele seu suco de... Laranja com graviola
- Abacaxi com hortelã?
- Isso. Não deve ser difícil de encontrar, como La passione
Levantei-me, e fui com ela. O que mais deveria ser feito, afinal? Estava tudo terminado. Anabel disse que eu não deveria mais procurá-la, e apesar de eu ser a teimosia em pessoa, quando quero, dessa vez resolvi obedecer. Como gran finale, resolvi não fazer nada à respeito. Eu estava esgotada de toda aquela relação conturbada, grande parte por minha culpa ou causa. 
- Você conhece algum restaurante por aqui? Não sei muito bem andar por esse bairro. Eu não moro aqui.
- Nem eu. Estou nesse emprego há menos de duas semanas, mas conheço um boteco logo ali, na esquina
Fomos indo e indo. Cristo, eu não tenho costume de frequentar os bares que encontro nas esquinas por aí, mas era um dia atípico. Peguei um ônibus aleatório e fui até o seu ponto final, uma praça qualquer, e me sentei, estando no final bem antes de embarcar. Eu mal suportava minhas pernas. Apesar de todo o calor, saltei do ônibus suando frio, tremendo por dentro. O meu pra sempre havia acabado há poucas horas atrás, com o veredito de Anabel. Eu estava completamente lost, down em mim. Pensando apenas em como eu pude perder a única pessoa
- É aqui. Pode se sentar
¬Eleanor puxou a cadeira para que eu me sentasse, e eu sentei, sem dizer nada¬
- Pelo menos essa cadeira fria, de ferro, refresca um pouco esse calor infernal.
- Eu gosto de sol, mas hoje realmente está muito calor.
O provável dono do bar veio nos atender, não tinha suco de abacaxi com hortelã, Eleanor achou melhor não começar a semana se embebedando, ainda assim, não fomos embora. Eu pedi um picolé de limão e ela um de manga. E ficamos ali, esquentando cadeiras com nossos desastres, no nosso primeiro encontro.

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